quarta-feira, 4 de maio de 2011

Fragmentos bem guardados

De minha infância procuro sempre lembrar dos melhores momentos, que me trazem uma sensação de aconchego. Eu tinha uma ideia fixa com a passagem do tempo, não lembro exatamente quando foi isso, mas sei que foi numa das vezes que devo ter pensado: "não posso esquecer disso (da imagem, da sensação), pois ela é tão boa, tenho que levá-la comigo, de alguma maneira". Então eu acho que conseguia, pelo esforço consciente de querer não esquecer, guardar algumas passagens significativas pra mim: lembro que meus pais viajavam muito comigo, e eu ia deitada no banco de trás do fusquinha e ficava olhando o meio do banco dos dois, (ali onde fica o freio de mão) quando as mãos deles se encontravam, aquilo me fazia bem. Acho que eu tinha uns 5 ou 6 anos. Também lembro de gostar de olhar o teto do fusca, que era branco com bolinhas brancas e dava uma sensação ótica de 3 D. Ver a paisagem passar daquele ponto de vista, deitada, também era muito bom.

Também tenho lembranças mais antigas, do cheiro, da temperatura e do gosto do leite materno. Mamei até quase 4 anos na minha mãe e essa sensação é uma lembrança muito boa.

Já na escolinha, lembro sobretudo de três amigos homens, pouco da professora - tia Mila - e muito do parquinho - teve uma páscoa em que encontrei vários ovos neste parquinho, um em cima do escorregador e um na balança, foi tudo lindo e colorido este dia. Engraçado, não me lembro de nenhuma menina, mas tinham muitas. Lembro de me esconder mais de uma vez junto com meu amigo durante o recreio num terreno com muito mato e ficávamos lá até acabar a aula (isso me rendeu uns castigos de, no máximo, 5 minutos, pois a aula já tinha acabado e não havia tempo para os castigos). Na minha memória aquele mato era todo amarelo, talvez um milharal - quem disse que as imagens do passado são em preto e branco? Pra mim, são vivas, pintadas de sons e cheiros e sempre com uma cor predominante. Não havia malícia, não havia medo de nada, só a sensação de querer desafiar, de não querer obedecer o comando do sinal que ia nos mandar voltar para sala de aula - nós gostavamos da escola, mas ficar no mato escondido, passando calor e coceiras era muito melhor, afinal estávamos por nossa conta e risco ali.

Desses amigos da escolinha, um em especial se tornou um grande amigo pois morávamos perto. Com ele tenho muitas lembranças boas: subir numa jabuticabeira e comer muitas jabuticabas. Subir no telhado da minha casa, de pés descalços e ver a Serra da Mantiqueira - nossa que sensação de liberdade! Minha mãe chamando a gente e a gente lá quieto, pra ela não saber que a gente tinha subido, pois era proibido. Gostávamos de inventar mentiras também, um para o outro, e nossas ficções eram tão bem construídas que quase viravam verdade para nós mesmos. Também entrávamos no forro de casa para explorar, aquele lugar escuro e com cara de abandonado era perfeito para nossa imaginação de pequenos exploradores.

Lembro dos dias de chuva, de brincar sozinha, com meia nos pés, fazer uma cabaninha com colchão e cobertores perto da janela (para ver a chuva da minha barraca), e ficar morando ali, uma vida inteira, no quentinho e com o som da chuva, de olho nos sons da cozinha que prometiam gostosuras quentinhas também.

Da casa da minha avó materna também lembro um pouco, sobretudo das mãos delas espremendo cenoura ralada numa redinha para me dar o suco. Ela também me fez engolir uma gema crua uma vez, irc... é como se eu engolisse ainda agora...

Lembro bem da mão gordinha, enrugada e quente da minha bisavó paterna, fazendo cruzinhas na minha testa, passando as mãos pelos meus braços, nestes movimentos de benção e descarrego carinhosos. Lembro muito dos meus bisavós, o carinho deles por mim era quase algo material, de tão forte. Lembro do cheiro deles, da pele, até das unhas, da papadinha da minha bisavó que eu gostava de passar a mão... Lembro-me do meu bisavô se aplicando injeções de insulina na perna e na barriga (aquilo era muito impressionante para uma menininha), lembro do jeito que ele me chamava: Auirinha... e de muitos detalhes de texturas, cheiros, cores e sons do apartamento deles, em São Paulo.
Havia também os acampamentos que fazia com meus pais, em praias, Trindade era linda, deserta, e era possível acampar na areia, de frente pro mar. Lembro de deitar à noite sobre o carro e ver a estrelas deslumbrada, junto com meu pai. Lembro-me de algumas estrelas cadentes, mas nunca dos pedidos que fiz.
Teve uma tempestade da qual me lembro de alguns flashes: meus pais em pé, tentando segurar a barraca para ela não voar, muito barulho de vento e chuva e das ondas batendo forte e eu deitada, muito assustada olhando e sentindo tudo aquilo, uma confiança enorme nos pais.

Lembro-me do mar, numa manhã de sol, assim que chegamos na praia e eu corri sozinha até a beira do mar, e ver toda aquela praia me invadindo de cheiros, arrepios, texturas e enchendo os meus olhos e de eu querer guardar aquilo pra sempre dentro de mim.
Acho que daí é que veio meu amor pela fotografia, o vídeo, o cinema. Que vieram bem mais tarde.

Texto para a oficina de audiovisual do NAPA


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